Tem uma loba presa no armário
{Cartas da Itália #8} A Jornada de uma Loba Mãe
A Loba Romana
Existe sempre aquela história que vem lá da nossa infância e faz parte das nossas melhores memórias.
A minha história é sobre uma loba — a loba romana — que deu origem a um dos maiores impérios que já existiu.
O meu quarto de menina emoldurava essa história em um quadro que ficava bem acima da minha cama. Nele, via uma loba e dois meninos mamando diretamente de suas tetas — como mamíferos ainda em busca de identidade. O quadro tinha figuras sombreadas, com toques de marrom e ocre, como se o tempo já tivesse deixado suas marcas ali.
Por anos, essa era a última imagem que eu via antes de dormir — e que frequentemente aparecia nos meus sonhos. A história da loba romana foi tantas vezes contada pela minha avó Leninha — que também me presenteou com o quadro — que logo cedo eu me encantei pelo universo das lendas e sonhava em conhecer a terra da loba: a Itália.
Há muitos anos atrás, uma loba mudou para sempre o destino de um império.
Conta a lenda que Rômulo e Remo, filhos de Marte, foram abandonados nas águas do rio Tibre. Uma loba os encontrou a beira do rio e, guiada por um instinto selvagem e materno, decidiu acolhê-los. Amamentou-os e protegeu-os até que eles pudessem crescer fortes e, mais tarde, fundar Roma — o império que mudaria o curso da história ocidental.
Como amante da sabedoria xamânica, acredito muito nesse elo entre nós, humanos, e os animais — e principalmente na simbologia que essa história carrega.
A loba me lembra daquela obra "Mulheres que Correm com os Lobos" de Clarissa Pinkola, que retrata, por meio de histórias e lendas, os arquétipos da alma feminina — da mulher selvagem.
O animal é usada para representar justamente esse instinto materno de proteção, de guiança e de sabedoria. O instinto que nasce das entranhas, que não precisa de explicação racional — ele apenas sabe.
Anos depois, pisei em Roma pela primeira vez, com 17 anos, e tive o meu tão sonhado encontro com ela.
E agora estou novamente no país desse mamífero fêmea, mas dessa vez carregando a minha própria cria em meu ventre. Eu virei uma loba mãe.
A Loba em Busca de Suas Raízes
Além das inspirações literárias, essa viagem também tem uma missão ancestral: a família paterna do Lúcio tem origem italiana, e estar nessas terras é, de certa forma, nos reconectarmos com as suas raízes e histórias.
Raízes que agora também germinam na minha filha Cecília, que cresce a cada dia na minha barriga e já se prepara para sua chegada ao mundo.
Eu vou parir uma lobinha — com o sangue dos ancestrais italianos correndo em suas veias e pulsando em suas memórias.
Durante essa jornada da gestação, um dos temas que mais tenho me aprofundado é a psicogenealogia e a epigenética.
A psicogenealogia explora como as experiências, traumas e padrões emocionais das gerações anteriores influenciam o nosso comportamento e nossas escolhas. Já a epigenética revela que as marcas deixadas por essas experiências não ficam apenas na memória: elas podem ser transmitidas biologicamente, moldando não só as características físicas, mas também emocionais e espirituais dos nossos descendentes.
Então, sabendo de toda essa influência do DNA — que carrega não apenas heranças físicas, mas também emocionais e espirituais —, nada melhor do que mergulhar fundo na história do país que, por tantos anos, foi o lar dos ancestrais paternos da Cecília.
Aliás, o próprio nome dela é, sincronicamente, italiano. Confesso que ao longo da vida, quando fazia listas de possíveis nomes para futuros bebês, Cecília nunca esteve entre eles. Até o dia em que descobri que estava grávida e tive mais do que certeza de que era uma menina. Dias depois, tive um sonho muito real — nesse sonho, o nome dela foi revelado para mim. Soube na hora que era o nome que ela escolheu.
Mais tarde, ao investigar a origem do nome, encontrei a história de Santa Cecília — que, curiosamente, também teve origem em Roma, assim como a loba.
Cecília é a santa padroeira dos músicos. Conta a lenda que, mesmo condenada a morte por se recusar a abandonar sua fé, ela morreu ouvindo o som de instrumentos celestiais. Seu nome, do latim Caecus (cega), simboliza a fé que vai além do que os olhos podem ver — um dom que nasce da alma, da intuição.
Então, essa jornada pela Itália também é uma forma de apresentar para minha filha — mesmo que ainda na barriga — um pedaço da sua origem, da sua ancestralidade. É como se, mesmo antes de nascer, ela já estivesse traçando esse caminho de volta para casa.
Curiosamente, ela começou a mexer na barriga exatamente no dia em que desembarcamos aqui. Parece que agora ela já é capaz de ouvir todos os sons ao redor — o burburinho das ruas, o som dos sinos, o italiano sendo falado em cada esquina.
Talvez ela já saiba que essa língua, esse solo, e essas memórias fazem parte dela.Talvez ela já saiba que, antes mesmo de nascer, está voltando para casa.
Ser mãe na Itália
Como escritora e estrategista de branding, desenvolvi a arte de observar pessoas e comportamentos. Então, aproveitei a viagem para investigar a experiência de ser mãe na Itália — as diferenças em relação ao Brasil, curiosidades e outras coisas que me inquietaram pelo caminho.
Durante a jornada, ficamos hospedados um fim de semana na casa de um casal de amigos — ele brasileiro, ela italiana — que têm um filho de 2 anos. Ela viveu a experiência de parir o seu bebê no Brasil, sem falar bem o português, longe da sua terra e dos seus costumes. Quando me contou a história, senti a força e a coragem que ela teve para maternar em um território estrangeiro, sem os pilares da sua cultura para se apoiar.
Nessas trocas maternas, descobri algumas peculiaridades da gestação na Itália.
Por exemplo, na Itália as mulheres têm o direito de tirar licença maternidade já com 3 meses de gestação — e esse afastamento é remunerado pelo governo. Existe um suporte social estruturado para as mães, que inclui auxílio financeiro e incentivo para que elas possam realmente se dedicar a maternidade nos primeiros meses de vida do bebê.
Mas o apoio não é só institucional — ele também é profundamente cultural.
A figura da mamma e da nonna é quase sagrada na Itália. As mães italianas são vistas como o centro emocional e prático da família. Elas são as responsáveis por transmitir os valores familiares, preservar as tradições e manter o equilíbrio da casa. A nonna (avó) também tem um papel essencial — ela é a guardiã da história familiar, a que cuida das crianças enquanto os pais trabalham, a que prepara os almoços de domingo e mantém a tradição viva a mesa.
Claro que não dá para romantizar completamente essa situação. A Itália ainda é um país profundamente patriarcal. Apesar dos avanços, as mulheres italianas continuam enfrentando desafios estruturais — desigualdade salarial, menor presença em cargos de liderança e uma carga invisível no trabalho doméstico. Em 2022, apenas 53% das mulheres italianas em idade ativa estavam empregadas — uma das taxas mais baixas da Europa. A maternidade, nesse contexto, muitas vezes reforça essas dinâmicas, já que o cuidado com os filhos ainda recai, na maioria das vezes, sobre as mulheres.
Mas uma das coisas que mais me inquietaram foi o estilo de vida italiano — essa relação com o slow life — principalmente nos aspectos ligados a alimentação. A forma como os italianos encaram as refeições é quase um ritual. Talvez isso explique por que, apesar de serem grandes consumidores de massas e carboidratos, a Itália é um dos países com maior expectativa de vida no mundo — em torno de 84 anos.
As refeições não são só sobre comida — são sobre presença. Os ingredientes são escolhidos com cuidado, os pratos são preparados com calma, e o ato de comer é um momento de conexão entre as pessoas. Foi impossível não me questionar sobre a minha própria relação com a comida.
Confesso que nunca fui muito ligada a cozinha — me sentia como Lorelai Gilmore, vivendo de delivery e fugindo do fogão. O ato de cozinhar nunca foi natural para mim e, de alguma forma, sempre soou como uma obrigação. Mas algo mudou nessa viagem. O ato de preparar uma refeição para o outro - e para mim mesma - começou a fazer sentido de um jeito novo.
Agora, gestando uma vida, tenho pensado ainda mais sobre isso.
Esses dias, assisti aos primeiros episódios da série "Com Amor, Meghan" estrelada pela Meghan Markle (que é casada com o príncipe Harry). Na série, ela recebe convidados em sua casa e conduz conversas enquanto faz atividades domésticas e artesanais — arranjos de flores, velas, cozinha. Fiquei encantada com a forma como ela realiza cada uma dessas tarefas: com delicadeza, naturalidade e uma simplicidade nata. Mas o que mais me tocou foi o ato de servir — criar um espaço de acolhimento e troca, oferecer algo feito com as próprias mãos, com intenção e cuidado.
Em um mundo acelerado, onde somos pressionadas por uma produtividade linear e por essa sensação constante de correr contra o tempo, essas pequenas gentilezas ganham ainda mais valor. Estamos cercadas por estímulos artificiais e um ritmo que nos desconecta do presente — e é justamente nesses pequenos rituais diários que reencontramos o centro. Fazer algo com as mãos, sem pressa, cria um espaço de presença e significado. É sobre desacelerar para reconectar.
Quando foi a última vez que você deu um presente para alguém feito com as suas próprias maõs?
Não acho que essas atividades domésticas devam ser apenas das mulheres/mães — acredito profundamente na importância de uma divisão mais justa das responsabilidades, e sabemos bem como a sobrecarga materna ainda é uma realidade para muitas mulheres, especialmente no Brasil. Mas, de alguma forma, essa viagem e essa imersão na cultura italiana me fizeram repensar a maternidade de uma maneira diferente.
Não pelas regras da sociedade, mas pelo meu real desejo de viver de forma plena e de me entregar a essa jornada. De experimentar novas práticas. De ressignificar crenças e padrões.
Talvez a maternidade não esteja só no ventre.
Talvez ela esteja também nas mãos que preparam uma refeição e no coração que acolhe.
E, por gestar uma menina, penso que serei um espelho para ela. Quero inspirá-la a ter coragem de questionar regras, confiar em sua intuição e explorar o mundo sem medo de sair da zona de conforto. Que ela saiba que pode ser forte sem deixar de ser sensível, e que o verdadeiro poder está em ser fiel a si mesma.
Meu desejo é que a Cecília cresça sabendo que honrar a nossa energia feminina — enxergar o mundo com magia e sensibilidade — não nos torna menos preparadas ou menos capazes. Pelo contrário, é exatamente essa visão intuitiva e criativa que nos fortalece. A maior lição que quero deixar para ela é sobre autenticidade: ser quem ela é, sem pedir permissão, e confiar na própria força para trilhar o caminho que escolher.
📖 Inspiração Literária
Hoje a inspiração vai para além dos livros e vou compartilhar uma curadoria musical que tem total conexão com a temática dessa carta: O Manifesto da Loba por Shakira.
Na recente turnê "Las Mujeres Ya No Lloran", que passou pelo Brasil, Shakira incorporou a poderosa metáfora do aquétipo da loba em suas apresentações, oferecendo ao público um "Manual da Mulher Loba" com dez mandamentos projetados nos telões durante o show e como abertura para a canção She Wolf (ou La Loba).
Os 10 Mandamentos da Loba de Shakira:
Proteja e cuide de sua alcateia acima de tudo.
Não peça permissão para ser você mesma.
Cante e dance quando precisar se curar.
Uive porque ninguém pode te calar.
Uma loba não ataca, ela se defende.
Uma loba não compete com outras lobas; elas se ajudam.
Não reprima sua natureza selvagem.
Escolha seu caminho sem que ninguém o imponha.
As lobas não cobiçam as posses de suas vizinhas; claramente!
Uma loba é uma loba para sempre.
Esses mandamentos enfatizam valores como autenticidade, solidariedade feminina e liberdade de expressão, ressoando profundamente com a audiência e reforçando a imagem da mulher forte e independente — representada pela loba.
Além de sua performance artística, Shakira compartilhou de forma vulnerável sua experiência pessoal de separação do ex-jogador Gerard Piqué, com quem esteve por quase 12 anos. Após o divórcio, ela se dedicou integralmente aos filhos, Milan e Sasha, destacando a importância de estar presente e acolhê-los durante esse período de transição. Em sua canção "Acróstico", lançada em 2023, Shakira contou com a participação dos filhos, refletindo sobre o amor maternal e a superação da dor.
Shakira também se destaca como uma voz ativa em prol dos imigrantes nos Estados Unidos. Ao receber o Grammy de Melhor Álbum Pop Latino por "Las Mujeres Ya No Lloran" em 2025, ela dedicou o prêmio aos imigrantes latinos, reconhecendo seu esforço e sacrifício na busca por um futuro melhor para suas famílias. Em seu discurso, afirmou: "Quero dedicar este prêmio a todos os meus irmãos e irmãs imigrantes neste país. Vocês são amados e dignos, e eu sempre vou lutar com vocês."
A trajetória de Shakira exemplifica o protagonismo feminino, tanto na arte quanto na vida pessoal, inspirando mulheres ao redor do mundo a abraçarem sua força interior e a se unirem em solidariedade.
Shakira sempre foi uma grande inspiração para mim. Sou fã dela desde pequena — suas músicas sempre fizeram parte da trilha sonora da minha vida. Mas o que mais me fascina nela não é só o talento musical, e sim a coragem de expressar a própria voz com autenticidade, sem medo de se posicionar, de se vulnerabilizar e de protagonizar a loba que ela é.
Ela nos ensina que ser loba não é só sobre força — é sobre acolher nossas próprias feridas, proteger nossa alcateia e encontrar poder na nossa vulnerabilidade. Como mãe e artista, ela mostra que é possível transformar dor em arte, desafios em resiliência, e que o ato de maternar vai além de gerar uma vida — é sobre sustentar, servir e guiar.
Se você também sente esse chamado da loba, recomendo não só assistir ao show da turnê Las Mujeres Ya No Lloran, mas também mergulhar na discografia da Shakira. Cada álbum é um verdadeiro mantra para a força feminina. Shakira tem o dom de traduzir, em melodia e palavras, a complexidade de ser mulher — e de ser loba.
Inspirações Extras
Se o tema da loba e do feminino selvagem ressoou com você, deixo aqui duas indicações que vão aprofundar ainda mais essa conexão:
🖋️
– Camila é especialista em Ho’oponopono e escreve com profundidade sobre cura emocional e autoconhecimento. Ela fez um post incrível no Instagram sobre o livro Mulheres que Correm com os Lobos que traduz com perfeição essa força arquetípica. Vale também acompanhar a newsletter dela, Alma que Habita o Corpo — um espaço de conexão interna e expansão. Confira aqui.🖋️ – Letícia tem uma edição especial da newsletter Devaneios da Let dedicada ao livro de Clarissa Pinkola Estés — e até criou uma série no YouTube sobre ele! Vale muito a pena mergulhar nesse conteúdo. Assista aqui.
📌 Próximos Passos
O plano inicial dessa série era escrever uma carta por dia, mas logo percebi que certas coisas precisam de tempo e presença para nascerem e serem compartilhadas. Agora, de volta ao Brasil, vou continuar compartilhando as últimas edições dessa série — muitas já foram escritas e só vão passar por alguns ajustes. Elas não seguirão uma ordem cronológica da viagem, mas sim o ritmo das sensações e energias do momento.
O Cartas da Itália sempre foi um experimento — sem um plano engessado ou certezas sobre o que ele viraria. Mas, durante esses dias, nasceu um desejo pulsante de transformar essa experiência em algo maior. Ainda não posso contar tudo, mas posso adiantar que, se você ama viagens (internas e externas) e sempre teve vontade de compartilhar suas histórias e sua voz no mundo, você vai amar o que vem por aí.
Enquanto isso, quero saber de você: qual parte dessa carta mais mexeu contigo? Me conta nos comentários ou dá um print no trecho que ressoou e compartilha nos stories me marcando lá no Instagram @cynirahelena. E se ainda não assina a newsletter, já corre lá pra não perder as próximas edições.
Nos vemos na próxima carta. ✨
Um abraço da loba,
Cynira Helena
Obrigada pelo carinho em partilhar minha newsletter e canal no YouTube. Já tive a oportunidade de te falar - inclusive pessoalmente - o quanto admiro sua escrita. É um prazer fazer parte de um pedacinho da tua newsletter de alguma forma e seguir "lendo" você.
A parte sobre cozinhar me tocou profundamente, por um tempo vi como obrigação mas hoje resgatei essa paixão que tenho pela cozinha. A última coisa que fiz com minhas mãos foi o perfume que te presentei quando tive a oportunidade te conhecer e passar uma tarde maravilhosa de trocas.